RELATOS – COMPROMETIMENTO E DETERMINAÇÃO: DA LINHA DE PRODUÇÃO À ASSESSORIA EXECUTIVA
Elisa Elena Strack
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Sinopse
Os cursos jurídicos em geral possuem como determinação
proporcionar ao estudante de Direito um conteúdo básico
vinculado às chamadas disciplinas propedêuticas, que
cumprem a função de estabelecer uma estrutura, uma base fundante
para o futuro jurista. É também uma exigência legal imposta pelo
Ministério da Educação.1
A preocupação com as questões fundantes
e básicas, entretanto, não representa apenas o que é legal ou
passageiro, questão meramente introdutória, como se seu caráter
fosse simplesmente preparatório ou uma espécie de trampolim para
a prática do futuro jurista. Pelo contrário, as disciplinas
propedêuticas têm por objetivo fornecer uma base de apoio que
acompanhe o jurista em toda sua trajetória de vida, pois elas se
propõem às questões mais elevadas e também porque estabelecem o
marco do pensar, do agir, da teoria e da prática.
No curso de Direito, as disciplinas propedêuticas ocupam
lugar de destaque no primeiro semestre e vêm abraçadas, já de
início, ao Direito Civil, de modo que o aluno é apresentado, desde
os primeiros passos, não apenas ao conceito de direito, à história do
direito e do Estado, mas também ao próprio direito civil. O jurista
contemporaneamente busca razões muitas vezes históricas, não
apenas para propor uma ação, justificar seus argumentos na busca do Judiciário, ou mesmo para contestar uma ação, mas muito antes
disso compreender por que está a favor ou contra uma causa, por
que se sensibiliza por uma ou outra questão. Ele busca, acima de
tudo, compreender o que é “certo” e “errado” e, mais do que isso,
compreender as várias dimensões do “certo” diante das questões
éticas, enfrentando, desde logo, o desafio de compreender as
relações entre Justiça e Direito.
A proposta aqui apresentada envolve uma caminhada que
busca recuperar desde já o espaço enorme que, por muito tempo, se
estabeleceu entre o público e o privado. Desde os seus primeiros
passos, o aluno poderá envolver-se na reflexão da esfera pública e
da esfera privada, observando como os dois mundos apresentam
linhas limites cada vez menos identificáveis.
As disciplinas propedêuticas, portanto, como Ciência
Política, Introdução ao Estudo do Direito e História do Direito,
assim como a Filosofia, Antropologia, a Psicologia, Sociologia e
Economia e Linguística, possuem conteúdos que acompanham
desde cedo a vida jurídica e jamais se afastam do jurista. Não se
quer produzir um jurista, mas sim promover o que é potência latente
em quem visa alcançar a Justiça. Professores e alunos são
convidados, em um ambiente propício ao desenvolvimento das
particularidades e diferenças, a participar da construção de um
Curso de Direito, em que as escolhas são incentivadas para o
amadurecimento ocasionado pela própria ação ou contemplação.
Esse jurista também não será reprodutor de um
conhecimento adquirido, mas produtor de ideias e decisões, que
estimam-se, sábias. Por isso, necessita compreender sua própria
existência no plano jurídico, assumindo o papel ativo que lhe é
destinado. Precisa compreender que a História do Direito é também
a sua história enquanto jurista, que a participação política e
democrática é o resultado de suas próprias escolhas na vida pública,
que, enfim, a sua interpretação da vida justa é a sua prática cotidiana
consigo próprio e na vida comunitária. Que o mundo em que vive
também é resultado de sua própria ação, de suas escolhas, do modo
como contempla, interpreta e toma consciência do seu próprio
significado.
Como princípio metodológico, estima-se provocar nos
alunos a curiosidade natural que já pode tê-los trazido para o curso
de Direito. Estímulos através de questões próprias de cada disciplina que justificam sua existência na grade curricular e em um Curso de
Direito. Quais são as questões fundamentais de cada uma das
disciplinas aqui tratadas e que são as que de alguma forma trazem a
promessa de constituírem-se em veículo do leigo ao mundo
jurídico? A seguir alguns exemplos.
Na disciplina de História do Direito, é natural que o aluno
pergunte por que voltar ao passado. Muitas tabuinhas órficas
encontradas na Grécia por arqueólogos incentivam o homem a
mergulhar no passado. Algumas dizem: - Estou seco de sede e
morro: mas dai-me, depressa, a água fresca que brota da fonte de
Mnemósina.
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Esta é a memória que mata a sede do homem, dá vida,
liberta. Ao recuperar o passado, o ser humano recupera sua própria
identidade e, com isso, sua .
Na realidade, o material histórico constitui fonte constante
sobre a qual se debruça o jurista em movimento crítico, buscando
formar uma bagagem que o auxilie a construir sua própria memória
histórica. Outras questões levarão o estudante a construir uma base
sobre a qual poderá tornar-se um jurista crítico, mas para isso deverá
conhecer tanto a história contada quanto desenvolver a consciência
de que boa parte dela é resultado da experiência de vida de quem a
transmitiu. Com isso em mente, pode-se partir para outras questões,
como a que se situa na origem do Direito: quando surgiu? Mas por
que é importante compreender que o Direito que vivemos hoje não
era o mesmo de antigamente? Como pode a noção de Justiça nos
povos ágrafos ser antes de tudo conciliatória e não de restauração de
um equilíbrio natural? E quando surgiu a Justiça? Ela sempre
existiu? É um existencial ou algo em constante evolução? Existe
apenas “uma justiça”, ou cada civilização tem a sua? Afinal, como
foi possível diferentes povos desenvolverem diferentes modos de
solução dos conflitos? Existe uma forma melhor do que outra?
Em Teoria Geral do Direito, a dúvida começa aqui: com
que material trabalha o jurista? O que usa no seu dia-a-dia
profissional? Que material é esse, de lide diária, bastante indomável,
que desliza pelos dedos da mão cada vez que se tenta segurá-la
como se fosse azeite? Esse material não é nem o Código de Leis,
nem o sistema judiciário, nem os livros seculares da doutrina, mas a própria liberdade. É ela que, no fundo, atrai o aluno para o Curso de
Direito e todos nós para a vida acadêmica.
Também a justiça, que se busca constantemente, sofreu com
a sujeição de uma atitude compreensiva à simples técnica – que
desfigurou o próprio Direito –, isso num tempo em outra época
nominada de “Iluminada”.
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E ainda que a Justiça seja chamada por
todos no momento de aplicação do Direito, como se fosse um dado
corriqueiro e evidente, os debates sobre o melhor modo de alcançála, assim como o conceito de Direito, ainda que sejam questões
antiquíssimas, formam ainda hoje o maior conteúdo em número de
teses e projetos de pesquisa.
O estudante veio ao Curso de Direito guiado por uma noção
vaga do que seja Justiça e Direito. Mas quando questionado sobre
seu significado, poucas são as palavras que consegue usar para
esclarecê-las. Em Introdução ao Estudo do Direito, o aluno é
colocado diante dos maiores desafios do jurista: como equilibrar o
desejo de liberdade e justiça com a segurança. Enfrentar esse desafio
é já o objetivo dessa disciplina.
Já em Ciência Política, a questão básica vincula a própria
noção e a ânsia de poder existentes nos seres humanos: poder, polis
e política, termos que merecem bastante atenção. A disciplina vai
tratar das diferenças entre poder e domínio, a necessidade da
administração da cidade, os modos de controle político. Conhecer e
compreender por que palavras como “política” e “virtude”, por
exemplo, encontram-se tão desgastadas, procurando recuperar seu
sentido original. Mas procura ir além, analisando os modos como se
desenvolveu o controle do poder e como se teorizou acerca do modo
de sua instituição, e ainda as relações entre política e ética e a
legitimidade do governo, e finalmente, as garantias de um governo
justo, ou a forma de como hoje se quer ou não governar e ser
governado. Essas são questões que introduzem o aluno no Curso de
Direito a partir da Ciência Política e Teoria Geral do Estado.
Cada tópico, portanto, é logo questionado na sua
justificativa para estar ali. E a partir da sua justificação, poderemos
seguir – pois também já foi dito que ao ser humano não cabe
resolver os problemas do mundo, mas indagar o ponto onde eles
surgem e se manter depois nos limites do compreensível (Goethe). E de outro modo, hoje, mais do que aprender a responder, é ter a
pergunta valorizada, porque aquele que questiona já está coberto de
razões… Está, pelo menos, incluído no debate e no diálogo,
exercendo sua autonomia, reconhecendo-se como indivíduo e
participando, pois o que se pode pensar do que jamais questiona,
daquele que não possui nenhuma curiosidade, daquele que, por
nada, demonstra interesse? A pergunta, portanto, aqui, sempre
possui um lugar privilegiado. Ela é a prova de que alguém existe e
está inserido, conscientemente, na História. Só pensar para existir
pode ser a máxima cartesiana, mas na atualidade é necessário
modificar um pouco o questionamento: o outro existe, e, no diálogo,
nos reconhecemos, com nossas alegrias e tristezas partilhadas, e
existimos.
Há mais uma observação que merece ser posta: na
atualidade há uma tendência generalizada à desconstrução, inclusive
uma tendência ao apagamento de tudo. A longa tradição da
produção cultural está ameaçada por uma “cultura das massas”, que
é habitada por um “homem das multidões”, como chama Mattéi, um
novo “bárbaro” que vê o mundo atual como “absolutamente chato”,
e produz a “cultura bárbara” do nosso tempo, aplicando essa
“produção” ao apagamento do mundo, de modo que a cultura
contemporânea procura reflexivamente sua própria aniquilação.
Parece que os efeitos da modernidade, que tinham por tendência
provocar o choque, prolongam-se agora na forma da destruição da
memória. É uma forma de causar o choque, que alimenta o bárbaro
contemporâneo e que busca uma comoção para o espírito na forma
da desconstrução – esses efeitos da decomposição são engendrados
espontaneamente pela cultura de massas quando ela se relaciona
com um sujeito vazio e incapaz de inserir-se no mundo.4
De certa forma, o declínio dos conceitos, compreensão dos
termos, muito bem explicado por MacIntyre,
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pode levar os alunos a
um sentimento de simpatia pela qualificação de “bárbaro”, pois,
afinal, perdemos boa parte da significação original dos termos por
várias razões, mas a globalização de certa forma explica muita coisa. “Bárbaro” pode ser visto como “radical”, e este é visto como “virtuoso”, o que não tem sentido nenhum com a origem grega dos
termos, se é que pretendemos compreender algo da paideia grega.
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Mas o que importa é que, na atualidade, esse mesmo
“bárbaro”, que muitos jovens podem ver como “bom”, é também o
típico aluno receptor que decodifica uma mensagem dada por um
professor emissor que codifica uma mensagem. E então os
conhecimentos, como nos diz Mattéi,7
não são um só saber dotado
de significação substancial, mas uma mera informação ligada a um
fluxo máximo transmitido pelo canal de comunicação – e o ensino
não é um esforço de pensamento crítico, e sim uma soma
indeterminada de informações de que é preciso apoderar-se. Essa é
a razão pela qual o aluno fica mudo! – Responde o autor às
perguntas insistentes e silenciosas de muitos professores. Não
queremos alunos mudos, reduzidos a receptores de informações,
próprio da cultura de massas – que não têm conteúdo nenhum.
Por isso, os professores sabem que não são meros suportes
e transmissores de informações. São muito mais do que isso. E esse
é um dos motivos do porquê se propuseram a escrever a presente
obra, que se destina exclusivamente a seus alunos. Esta obra é a
prova viva da importância do trabalho de cada professor, de cada
mestre, com seus discípulos em sala de aula. Ela tem uma pretensão
simples, mas é grandiosa em si mesma, pois deseja tão somente
estabelecer uma ponte entre o aluno, que se prepara para dar os
primeiros passos no campo jurídico, e o professor, que se prepara
para ensinar esses primeiros passos. Por isso, a obra pretende
espelhar o sagrado de cada um – ou o modo sagrado como cada um
contempla e vive o ensino jurídico com seus alunos.
Precisamos estar conscientes, unindo-nos em mútuo auxílio
para nos manter conscientes. Vivemos atualmente na “cultura de
massas” e podemos ser identificados ou corresponder a esse “ser
humano das multidões”, que é vazio de sentido. Precisamos estar
conscientes do perigo da adoração do nada, pela simples reação e
correspondência ao desejo do nada da multidão em si.8
Diante disso, podemos tentar encontrar um sentido através
da dedicação ao estudo, à compreensão do tempo e do espaço da
humanidade e ao resultado de sua produção jurídica. Assim,
poderemos dizer que fizemos de fato nossas escolhas. Do contrário,
teremos sido transformados em objeto – de uso e gozo – dessa
“humanidade barbarizada”9
, que tem antes anseio pela destruição do
que pela construção. O final disso tudo é fácil de ser percebido. Pela
primeira vez na história, o ser humano conseguirá destruir o que
jamais pensou que pudesse deixar de possuir: o livre-arbítrio.
Imaginando, assim, que aos nossos alunos seja possível
enfrentar os desafios de estudar Direito com uma base doutrinária
proposta por nossos professores, que busque aproximar os primeiros
passos do Curso de Direito de maneira crítica, clara, coerente e
simples, mas que, sendo simples, não deixe se ser igualmente
profunda e que essa profundidade seja, não apenas técnica, mas
também ética. Nesse sentido, são todos parte de uma construção
permanente.10
É assim que vemos os primeiros passos em um Curso de
Direito podendo ser dados de modo firme, com um olhar sobre a
teoria e outro sobre a prática, sem desconhecer os vários percalços
que as distintas racionalidades do mundo estão a sugerir. E em
atitude alerta, pois se corre sempre o risco de sucumbir às tentações
de uma rotina jurídica. Por isso o título da obra envolve a
“formação” do jurista, relembrando a paideia grega, palavra
também tão cara a Gadamer. A visão ontológica do sujeito deve
sempre dialogar com a existência real do mundo no qual ele também
se insere. E ali não existe rotina, ali estaremos dialogando com Heráclito no rio que nunca cessa de correr e no tempo que sempre
nos amadurece – ou melhor, pode nos amadurecer – ou não. Fica
aqui o convite.